Netto perde sua alma

“Eu matei índio. Matei negros. E matei brancos. Mais que tudo, matei castelhanos: argentinos, paraguaios, chilenos. Matei portugueses. Matei galegos. Aqui neste quarto eu ficava matutanto comigo mesmo nessa gente toda que matei e me dava um peso enorme no coração.”

Finalmente em minha terceira leitura para o mês de março encontrei os elementos que acredito que devam estar em um livro para ele ser considerado épico. Eu tenho um apreço muito grande pelos autores gaúchos, minha biblioteca de literatura brasileira é composta quase totalmente por eles, alguns chamam isso pejorativamente de bairrismo, eu penso mais em uma espécie de identificação, é fácil para mim imaginar os pampas, as estâncias no meio do nada, e principalmente as personagens. Aqui também entra uma espécie de mitificação que é muito comum ao gaúcho, nós que temos vento minuano correndo nas veias, temos tendência em exaltar e romantizar nossos feitos, nossas guerras e principalmente nossos heróis.

No romance “Netto perde sua alma”, de Tabajara Ruas é fácil perceber esta mitificação tanto em relação à guerra quanto ao misterioso General netto, responsável pela República Rio-Grandense, o autor mesmo salienta que o livro é antes de tudo uma ficção histórica sobre um tempo histórico e que as notas biográficas não são exatas, portanto encarei o livro como o que ele é de fato, ficção e apesar da exatidão de alguns dados em nenhum momento percebo este Netto como o real, aquele que é considerado herói farroupilha e que participou de todas as guerras de fronteira e das revoluções que tumultuaram a região sul do Brasil no século XIX.

A narrativa está estruturada em seis capítulos, todos eles datados e situados geograficamente. No primeiro capítulo estamos em primeiro de julho de 1866 e encontramos o General Netto se recuperando no Hospital Militar de Corrientes, na Argentina, lá ele se vê envolvido com o drama do Capitão de Los Santos que acusa o cirurgião francês de ter amputado suas pernas sem necessidade e reencontra o sargento Caldeira, e com ele relembra sua participação na guerra e também do encontro com Milonga, escravo que ainda muito jovem se alistara no Corpo de Lanceiros Negros. Estas memórias nos mostram o claro contraponto entre as motivações que levaram tão diversos homens à lutarem no mesmo lado na guerra, enquanto Netto lutava por ideias, os negros Caldeira e Milonga lutavam por suas vidas.

O segundo capítulo, nos leva à reunião no morro da Fortaleza em 8 de abril de 1840 e se centra nos longos anos da guerra, é aqui também que presenciamos o encontro de Netto com Milonga e deste com Caldeira. No capítulo 3, retrocedemos quatro anos e estamos no Dorsal das Encantadas mais precisamente no dia 11 de setembro, nove dias antes da declaração de independência (20 de setembro) feita pelo General Netto, mas aqui, apesar de declarada a guerra, a ação é apenas sugerida. O quarto capítulo que tem como título “Último verão no continente”, datado de 2 de março de 1845 nos mostra a preparação de Netto após terminada a revolução para voltar para suas terras, ele é acompanhado por Caldeira, no entanto não contam que Milonga agora aleijado irá se revoltar contra Netto o que culminará em uma tragédia.

No quinto capítulo estamos em Piedra Sola no dia 25 de junho de 1861 e somos confrontados com dois diálogos de Netto, com o embaixador inglês e com Maria Escayola, futura mulher do general. Percebe-se nestes diálogos a clara dicotomia entre a vida pública que o leva as guerras e as lutas pelas ideias e a vida privada na qual ele se dedica a construir uma família. Fica claro aqui que as guerras e suas motivações políticas e financeiras sempre acabam por trazer danos a vida dos indivíduos, sejam eles quem forem.

No último capítulo voltamos ao dia 1o de julho de 1866, em Corrientes e retomamos a mesma cena inicial, onde Netto em meio aos delírios causados pela doença acredita receber a visita do sargento Caldeira e juntos em uma cena muito bela e idílica rumam para a canoa que levará o general até a outra margem.

“Olhou para o céu escuro. Lembrou-se da lua no dorso dos cavalos. Procurou a lua, mas só encontrou o reflexo prateado do seu resplandor. Aproximou-se da canoa pisando vagaroso a areia macia, já sem pressentimentos, sem cautela, sem olhar para o Vulto, sentindo a mordida fria do ar, dominando o narcisismo desatento, recuperando com satisfação a tolerância, a paternalidade, sentindo-se sagaz e dissimuladamente majestoso. Olhou a praia deserta. (Agora, o vento estava a favor). Netto empurrou a canoa e saltou para dentro dela.”

Enfim foi uma leitura envolvente e ágil, Tabajara Ruas conseguiu me prender do início ao fim da narrativa, devorei as 164 páginas do livro em duas horas e essa característica me fez pensar sobre um assunto bastante popular: os spoilers. Bem, eu já sabia de antemão de quase todos os fatos históricos narrados no livro, eu sabia como o General Netto morreu, e saber destes fatos não fizeram a experiência da leitura ser menos agradável, ou transformadora, por isso mesmo ela valida minha ideia de que a leitura é uma experiência única para cada leitor e mesmo sabendo o destino não deixo de aproveitar a viagem que ela me proporciona, neste caso considero o percurso mais importante que o destino.

Em 2001 o livro foi para as telonas com o ator Werner Schüneman no papel do General Netto. Ganhou quatro Kikitos de Ouro, nas categorias de melhor filme – júri popular, melhor montagem, melhor trilha sonora e prêmio especial do júri.

RUAS, Tabajara. Netto perde sua alma. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

Esta leitura é a terceira para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de março é a leitura de obras épicas.

Confira no blog do Desafio as resenhas dos outros participantes.

 

6 opiniões sobre “Netto perde sua alma

  • 31 de março de 2011 em 12:00
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    Você tocou em ponto que se assemelha bastanto ao que penso: nossa identidade, nossas subjetividades influenciam a maneira como recebemos determinados livros. Não considero a sua predileção por autores gaúchos um bairrismo… é um rótulo simplista que não explica com justiça nossa afinidade pelo estilo de escrita, pelo ideário que compõe a escrita de um autor. Mais uma vez, uma dica que merece uma nota de lembrança. Espero ter a oportunidade conhecer essa história também.

    Beijocas

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    • 4 de abril de 2011 em 14:19
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      Ah Vivi imagina que triste seria se todos fossemos tocados da mesma maneira por nossas leituras… eu também não acho bairrismo, mas já fui “acusada” por vários conhecidos hehehehe…
      estrelinhas coloridas…

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  • 31 de março de 2011 em 15:08
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    Ei Mi,

    Eu conheço o autor, mas não li este livro. Achei muito interessante a resenha, nunca tinha lido nenhuma resenha dele. Adoro suas dicas diferentes 🙂

    p.s: Vc já me passou seu endereço para eu te enviar os marcadores do blog?

    bjoo

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    • 4 de abril de 2011 em 14:22
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      Ah jura que tu mandas pra mim? Fiquei toda prosa agora hehehehehe… vou te mandar e-mail com o endereço ;D
      Então que eu tenho percebido que leio umas coisas que ninguém conhece… depois de escrever minhas resenhas sempre procuro por outras e geralmente encontro muito poucas hehehehe…
      estrelinhas coloridas…

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  • 31 de março de 2011 em 19:53
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    Não acho bairrismo da sua parte (da mesma forma que possuo uma estante inteira só com autores paraenses). Quanto mais estamos próximos do escritor, maior a facilidade de aquisição do livro e da recepção da obra.

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    • 4 de abril de 2011 em 14:26
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      Então Raphael eu também não acho bairrismo não, as pessoas geralmente falam isso quando descobrem que não gosto muito de Jorge Amado, e meu caso com ele é justamente sobre o que tu falastes, falta identificação com as paisagens, com as personagens e com a linguagem, sempre me parece que não é do Brasil que ele fala, e de certo modo não é o Brasil que eu conheço, visto a discrepância entre a Bahia e o RS hehehehe…
      estrelinhas coloridas…

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