“Até aquele encontro roubado com Jean-Christophe, minha pobre cabeça educada e reeducada, simplesmente ignorava que se pudesse lutar sozinho contra o mundo inteiro. O flerte se transformou em grande amor. Até mesmo a ênfase excessiva à qual o autor havia sucumbido não me parecia nociva à beleza da obra. Sentia-me literalmente devorado pelo fluxo poderoso de centenas de páginas. Para mim, era o livro sonhado: ao término da leitura, nem a maldita vida, nem o maldito mundo poderiam ser como antes.” (p. 94)
O Desafio Literário tem se mostrado, cada vez mais, um motivador para que eu me permita sair da zona de conforto literário na qual me refugio, o tema do mês de abril (autores orientais) por si só já era um grande movimento nesta direção, mas eu não poderia supor o quanto ele seria enriquecedor, a
primeira leitura já havia sido encantadora e esta segunda obra veio confirmar esse fato.
O livro do chinês Dai Sijie, radicado há 15 anos na frança, me conquistou primeiro pelo título, minha clara predileção por livros com nomes pouco óbvios falou alto, mas uma rápida leitura na sinopse, ou melho dizendo no primeiro páragrafo dele me fizeram tomar a decisão de incluir essa obra no desafio, e que escolha acertada foi me lançar na leitura desta singela história que é sobretudo sobre o poder transformador da literatura.
“O que é a reeducação? Na China vermelha, no fim de 68, o Grande Timoneiro da Revolução, o presidente Mao, lançou um dia uma campanha que iria mudar profundamente o país. As universidades foram fechadas, e “os jovens intelectuais”, quer dizer, os secundaristas, foram mandados ao compo para serem reeducados por camponeses pobres” (p. 8)
A história, como se pode verficar no excerto acima, se passa no fim da década de 60, quando Mao Tse Tung lançou a chamada Revolução Cultural. Uma das diretrizes da Revolução impactou diretamente a vida de dois jovens: o narrador da história e seu amigo Luo, de 17 e 18 anos respectiviamente, eles foram mandados para um montanha chamada “Fenix Celestial” sob a responsabilidade do chefe da aldeia, para serem reeducados porque seus pais eram ” intelectuais inimigos do povo“.
A rotina extenuante que inclui trabalhos pesados em lavouras e mina de carvão dos dois jovens só é interrompida porque o chefe da aldeia gosta de ouvir histórias e se encanta com a capacidade narrativa de Luo, o que permite aos amigos irem esporadicamente a cidade para assistirem filmes no cinema local para depois contarem na aldeia. Estes são os pequenos momentos de felicidade dos dois.
No entanto dois acontecimentos vão mudar ainda mais a vida dos dois jovens: conhecer a costureirinha e a descoberta de uma valise repleta de inestimável tesouro. São estes dois marcos que modificam profundamente a visão de mundo e o cotidiano dos três jovens. Ao se dedicarem à leitura dos livros de Balzac, Baudelaire, Dostoievski, Dickens, Dumas entre outros, eles abrem seus horizontes para além da realidade imposta por Mao, páginas e mais páginas lidas, forjam uma sensação de autonomia que os olhares em direção ao mundo não é mais enevoado com as lentes impostas pelo regime mas sim com as lentes da criticidade. As mudanças que a leitura provoca nos três amigos é tão profunda quanto imprevisível, como amargamente comprova Luo, que em uma tentativa de “civilizar” a costureirinha através da leitura das obras ocidentais, não poderia supor o quão libertadora seria a experiência.
Balzac e a Costurerinha Chinesa é uma obra encantadora e singela, mas de uma força que surpreende, pois mesmo aqueles para quem a literatura é notoriamente libertadora são pegos de surpresa pela dimensão do poder transformador que ela tem.
SIJIE, Dai. Balzac e a Costureirinha Chinesa. Tradução de Véra Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
Essa leitura faz parte do Desafio Literário 2012 cuja temática do mês de abril era a leitura de autores orientais.
Aqui é possível ler as resenhas dos outros participantes.
O livro tem um versão cinematográfica, roterizada e dirigida pelo próprio Dai Sijie, e que traz como bônus informações sobre os dois jovens e o vilarejo, vinte anos depois.