Os Vendilhões do Templo

Só que duvidava dessa possibilidade. Duvidava que o homem fosse capaz de fazer milagres. Por uma simples razão: se estava a seu alcance realizar tais prodígios, por que continuava pobre, usando vestes comuns, andando no meio da multidão? Por que não produzia, do nada, ouro, palácios, manjares, mulheres?” (pág. 86)

A primeira leitura do mês de março foi encharcada de emoções, quando fiz minha lista para o desafio elegi um livro de Moacyr Scliar, Os vendilhões do templo, e no dia 27 de fevereiro este autor que admiro demais faleceu, e foi ainda em choque que dois dias depois começar a ler este romance que se estende por três épocas diferentes, todas interligadas pela história bíblica dos vendilhões do templo.

O episódio bíblico da expulsão dos vendilhões do templo descrito nos versículos 12 e 13 do capítulo 21 do evangelho de Mateus: “e entrou Jesus no Templo de Deus, e expulsou todos os que vendiam e compravam no Templo, e derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombos. E disse-lhes: ‘Está escrito: a minha casa é casa de oração, mas vós fizestes dela um covil de ladrões’” é o ponto de partida da narrativa.

Na primeira parte nos encontramos em Jerusalém no ano 33 d.C. E vemos várias passagens bíblicas além dos versículos citados acima pela ótica de um dos vendilhões do templo, e nesta narrativa reside uma das riquezas do texto de Scliar, porque ele humaniza o vendilhão, nos mostrando suas virtudes, seus pecados e também que ele era um protótipo do capitalista moderno: inventivo, empreendedor, sedento de lucros.

A segunda parte dá um salto no tempo e vamos parar no ano de 1635 em uma pequena missão jesuítica no sul do Brasil. Chegamos lá junto com o padre Nicolau que deverá substituir padre Manuel que já está muito velho, no entanto as dificuldades começam a se apresentar logo, pois o idoso padre morre antes que o jovem jesuíta aprenda a falar guarani e ele não consegue se comunicar com os índios. Quando o padre está perto de entrar em desespero aparece a figura do enigmático Felipe que se propõe a servir de intérprete para o padre. Nesta parte também são retomados alguns elementos bíblicos, demonstrando principalmente como as mensagens do Mestre chegaram até a pequena aldeia um tanto distorcidas. A passagem bíblica dos vendilhões aparece quando o padre não sabe como agir com um velho índio que expõe suas esculturas de pombos feitas em madeira, na porta da capela. O desfecho desta parte da narrativa deixa muitos questionamentos em aberto que só vão ser respondidos na parte final do romance.

A terceira parte se passa em 1997, na fictícia São Nicolau do Oeste, cidade que se originou da missão jesuítica, cujo nome homenageia o nosso já conhecido padre Nicolau. Ela é narrada em primeira pessoa pelo assessor de impressa da prefeitura que ao receber um telefonema de um antigo colega começa a relembrar de uma peça que ele e mais 3 colegas encenaram ao fim de um ano letivo e que culminou em uma tragédia. A peça, uma tentativa desesperada do amigo para passar de ano em matemática, é a encenação da passagem bíblica da expulsão dos vendilhões do templo, mas nesse caso há apenas um vendilhão, pois ninguém aceitou o ingrato papel, é nesta parte também que ficamos sabendo que as duas primeiras partes da narrativa são fruto de manuscritos do assessor.

Nas três narrativas fui percebendo elos de ligação mais amplos que a história dos vendilhões do templo, religião, dinheiro, política e poder estão em todos os três em maior ou menor grau e nos levam invariavelmente aos questionamentos.

Fiquei surpresa com a divisão do livro em três partes que a princípio me pareceram novelas, mas conferindo a ficha catalográfica vi que é mesmo romance, e também porque esperava uma história no mesmo estilo do excelente “A mulher que escreveu a bíblia”, essa expectativa se deve é claro à temática religiosa dos dois e a distância entre os dois livros só serviram para me lembrar o quão bom contador de histórias é Scliar, ele conseguiu me surpreender com uma história bem diferente da que imaginei, e eu adoro isso.

SCLIAR, Moacyr. Os vendilhões do templo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Esta leitura é a primeira para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de março é a leitura de obras épicas.

Confira no blog do Desafio as resenhas dos outros participantes.

 

 

Coisas Frágeis

“Acho que posso afirmar sempre ter suspeitado que o mundo fosse uma farsa barata e tosca, um péssimo disfarce para algo mais profundo, mais esquisito e infinitamente mais estranho, e de alguma forma sempre ter sabido a verdade”

Eu adoro saber o que inspira os escritores e já na introdução de Coisas Frágeis, Neil Gaiman me brindou com breves relatos de qual foi a motivação para a escrita de cada um dos nove contos do volume, que vão de Sherlock Holmes a Crônicas de Nárnia com uma parada em Matrix.

Um dos contos que mais gostei foi “A vez de outubro”, primeiro porque ele traz uma história dentro de outra história, e segundo porque nela os meses do ano se reúnem em torno de uma lareira para contar e ouvir histórias, segundo Gaiman a história que Outubro conta foi um exercício para a escrita do excelente Livro do Cemitério.

Ainda não li Deuses Americanos, cujo personagem Shadow aparece no conto O monarca do vale, mas isso não interferiu na leitura, adorei o conto e não me senti perdida na leitura, nele Shadow vive uma aventura na Escócia, onde é contratado para ser segurança em uma festa estranha. A história é uma homenagem ao poema épico Beowulf – que já virou filme com roteiro do próprio Neil Gaiman.

Gostei muito de saber que Gaiman também se incomodou com o final da personagem Susan, de Crônicas de Nárnia e que criou uma versão “alternativa” para ela. Um estudo em esmeralda, claramente inspirado em Conan Doyle também é uma releitura excelente e foi escrita a partir do pedido do amigo Michael Reaves: “Quero um história que junte Sherlock Holmes e o mundo de H. P. Lovecraft” o conto é muito bom e em 2004 ganhou merecidamente o Prêmio Hugo como melhor conto.

Gaiman sempre me surpreende, ler suas obras nunca é entediante, os contos deste volume não fogem à regra e me proporcionaram momentos ótimos. A variedade de temáticas também é um ponto positivo pois empregam à leitura um ritmo fluido e leve.

Contos:

Um Estudo em Esmeralda
A Vez de Outubro
Lembranças e Tesouros
Os Fatos no Caso da Partida da Senhorita Finch
O Problema de Susan
Golias
Como Conversar com garotas em Festas
O Pássaro-do-Sol
O Monarca do Vale

GAIMAN, Neil. Coisas Frágeis. Tradução Michelle de Aguiar Vartuli. São Paulo: Conrad, 2010.