Os Vendilhões do Templo

Só que duvidava dessa possibilidade. Duvidava que o homem fosse capaz de fazer milagres. Por uma simples razão: se estava a seu alcance realizar tais prodígios, por que continuava pobre, usando vestes comuns, andando no meio da multidão? Por que não produzia, do nada, ouro, palácios, manjares, mulheres?” (pág. 86)

A primeira leitura do mês de março foi encharcada de emoções, quando fiz minha lista para o desafio elegi um livro de Moacyr Scliar, Os vendilhões do templo, e no dia 27 de fevereiro este autor que admiro demais faleceu, e foi ainda em choque que dois dias depois começar a ler este romance que se estende por três épocas diferentes, todas interligadas pela história bíblica dos vendilhões do templo.

O episódio bíblico da expulsão dos vendilhões do templo descrito nos versículos 12 e 13 do capítulo 21 do evangelho de Mateus: “e entrou Jesus no Templo de Deus, e expulsou todos os que vendiam e compravam no Templo, e derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombos. E disse-lhes: ‘Está escrito: a minha casa é casa de oração, mas vós fizestes dela um covil de ladrões’” é o ponto de partida da narrativa.

Na primeira parte nos encontramos em Jerusalém no ano 33 d.C. E vemos várias passagens bíblicas além dos versículos citados acima pela ótica de um dos vendilhões do templo, e nesta narrativa reside uma das riquezas do texto de Scliar, porque ele humaniza o vendilhão, nos mostrando suas virtudes, seus pecados e também que ele era um protótipo do capitalista moderno: inventivo, empreendedor, sedento de lucros.

A segunda parte dá um salto no tempo e vamos parar no ano de 1635 em uma pequena missão jesuítica no sul do Brasil. Chegamos lá junto com o padre Nicolau que deverá substituir padre Manuel que já está muito velho, no entanto as dificuldades começam a se apresentar logo, pois o idoso padre morre antes que o jovem jesuíta aprenda a falar guarani e ele não consegue se comunicar com os índios. Quando o padre está perto de entrar em desespero aparece a figura do enigmático Felipe que se propõe a servir de intérprete para o padre. Nesta parte também são retomados alguns elementos bíblicos, demonstrando principalmente como as mensagens do Mestre chegaram até a pequena aldeia um tanto distorcidas. A passagem bíblica dos vendilhões aparece quando o padre não sabe como agir com um velho índio que expõe suas esculturas de pombos feitas em madeira, na porta da capela. O desfecho desta parte da narrativa deixa muitos questionamentos em aberto que só vão ser respondidos na parte final do romance.

A terceira parte se passa em 1997, na fictícia São Nicolau do Oeste, cidade que se originou da missão jesuítica, cujo nome homenageia o nosso já conhecido padre Nicolau. Ela é narrada em primeira pessoa pelo assessor de impressa da prefeitura que ao receber um telefonema de um antigo colega começa a relembrar de uma peça que ele e mais 3 colegas encenaram ao fim de um ano letivo e que culminou em uma tragédia. A peça, uma tentativa desesperada do amigo para passar de ano em matemática, é a encenação da passagem bíblica da expulsão dos vendilhões do templo, mas nesse caso há apenas um vendilhão, pois ninguém aceitou o ingrato papel, é nesta parte também que ficamos sabendo que as duas primeiras partes da narrativa são fruto de manuscritos do assessor.

Nas três narrativas fui percebendo elos de ligação mais amplos que a história dos vendilhões do templo, religião, dinheiro, política e poder estão em todos os três em maior ou menor grau e nos levam invariavelmente aos questionamentos.

Fiquei surpresa com a divisão do livro em três partes que a princípio me pareceram novelas, mas conferindo a ficha catalográfica vi que é mesmo romance, e também porque esperava uma história no mesmo estilo do excelente “A mulher que escreveu a bíblia”, essa expectativa se deve é claro à temática religiosa dos dois e a distância entre os dois livros só serviram para me lembrar o quão bom contador de histórias é Scliar, ele conseguiu me surpreender com uma história bem diferente da que imaginei, e eu adoro isso.

SCLIAR, Moacyr. Os vendilhões do templo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Esta leitura é a primeira para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de março é a leitura de obras épicas.

Confira no blog do Desafio as resenhas dos outros participantes.

 

 

Coisas Frágeis

“Acho que posso afirmar sempre ter suspeitado que o mundo fosse uma farsa barata e tosca, um péssimo disfarce para algo mais profundo, mais esquisito e infinitamente mais estranho, e de alguma forma sempre ter sabido a verdade”

Eu adoro saber o que inspira os escritores e já na introdução de Coisas Frágeis, Neil Gaiman me brindou com breves relatos de qual foi a motivação para a escrita de cada um dos nove contos do volume, que vão de Sherlock Holmes a Crônicas de Nárnia com uma parada em Matrix.

Um dos contos que mais gostei foi “A vez de outubro”, primeiro porque ele traz uma história dentro de outra história, e segundo porque nela os meses do ano se reúnem em torno de uma lareira para contar e ouvir histórias, segundo Gaiman a história que Outubro conta foi um exercício para a escrita do excelente Livro do Cemitério.

Ainda não li Deuses Americanos, cujo personagem Shadow aparece no conto O monarca do vale, mas isso não interferiu na leitura, adorei o conto e não me senti perdida na leitura, nele Shadow vive uma aventura na Escócia, onde é contratado para ser segurança em uma festa estranha. A história é uma homenagem ao poema épico Beowulf – que já virou filme com roteiro do próprio Neil Gaiman.

Gostei muito de saber que Gaiman também se incomodou com o final da personagem Susan, de Crônicas de Nárnia e que criou uma versão “alternativa” para ela. Um estudo em esmeralda, claramente inspirado em Conan Doyle também é uma releitura excelente e foi escrita a partir do pedido do amigo Michael Reaves: “Quero um história que junte Sherlock Holmes e o mundo de H. P. Lovecraft” o conto é muito bom e em 2004 ganhou merecidamente o Prêmio Hugo como melhor conto.

Gaiman sempre me surpreende, ler suas obras nunca é entediante, os contos deste volume não fogem à regra e me proporcionaram momentos ótimos. A variedade de temáticas também é um ponto positivo pois empregam à leitura um ritmo fluido e leve.

Contos:

Um Estudo em Esmeralda
A Vez de Outubro
Lembranças e Tesouros
Os Fatos no Caso da Partida da Senhorita Finch
O Problema de Susan
Golias
Como Conversar com garotas em Festas
O Pássaro-do-Sol
O Monarca do Vale

GAIMAN, Neil. Coisas Frágeis. Tradução Michelle de Aguiar Vartuli. São Paulo: Conrad, 2010.

O assassinato de Roger Ackroyd

"- Não lhe disse, pelo menos trinta e seis vezes, que é inútil ocultar coisas a Hercule Poirot? Que ele sempre acaba descobrindo a verdade? "

A capa da minha edição tem como subtítulo “Hercule Poirot enfrenta seu maior desafio”, e foi com a promessa de um mistério daqueles que me lancei a leitura do sétimo livro publicado pela grande dama do crime. Obviamente a história gira em torno da morte do tal Roger Ackroyd que é um grande industrial e morador de King’s Abbot, um desses encantadores vilarejos ingleses e todos são suspeitos.

Poirot está morando anonimamente no vilarejo e é vizinho do médico local, James Sheppard que é também o narrador da história, e de sua irmã Caroline. Ela é uma figura interessante, personifica aquelas tradicionais fofoqueiras do interior, que tudo sabe e tudo vê, mas é ao mesmo tempo muito inteligente e perspicaz, e sua participação na história rende momentos bastante divertidos.

Este livro foi surpreendente principalmente pela estrutura e pela maneira como me envolveu até o fim, mas aquela promessa lá da capa de ser o maior desafio do Poirot não se mostrou muito válida, porque achei que ele solucionou o mistério com facilidade e a trama não era assim tão intrincada., mas isso também se deve ao fato de que eu criei expectativas um pouco mais altas, e claro que isso influenciou a leitura.

Para Sempre

Para Sempre conta a história de Ever, uma menina que até a pouco tempo costumava ser uma adolescente comum, tinha amigos, era líder de torcida, mas um acidente que mata seus pais, sua irmã caçula Riley e sua cadela Buttercup, ela sobrevive mas carrega como uma lembrança permanente de sua experiência de quase-morte a capacidade de ver auras e escutar pensamentos.

Após o acidente ela passa a morar com a tia, sua única parente, e agora é uma menina muito diferente, desorientada, confusa e que se esconde sob o capuz de agasalhos largos e está sempre com o ipod ligado no volume mais alto em uma tentativa de manter afastadas a profusão de pensamentos nem sempre agradáveis a sua volta. Nesta sua nova vida ela tem apenas dois amigos, Haven e Miles e é também em sua nova escola que ela conhece Damen, um garoto absurdamente lindo e que tem a capacidade de neutralizar as interferências energéticas que inundam a mente dela, isso faz com que ela fiquei intrigada e assustada ao mesmo tempo.

Não sei vocês mas eu ando meio cansada de livros cuja trama envolve mocinho imortal + mocinha + vilões rasos, e Para Sempre não é nada além disso. Tem uma estrutura narrativa fraca, personagens que não causam empatia e uma profusão de influências espiritualistas que ao invés de instigarem a curiosidade cansam. As personagens são uma galeria de caricaturas, a protagonista é irritante ao extremo, se esconde no papel de vítima ao invés de enfrentar seus traumas, Haven tem uma autoestima tão baixa que se fossemos medir ela teria índice negativo, as antagonistas são tão senso comum que chega a ser risível, Miles o amigo gay ainda tem uma tiradas engraçadas mas ainda assim caricato e ainda temos Damen, o garoto cuja beleza beira à perfeição, é misterioso e esconde um segredo ancestral. Opa! Já não conhecemos esse enredo? Pois é as semelhanças com outras séries com temática sobrenatural saltam ao olhos e me deixaram com expectativas muito baixas e isso foi ótimo porque trama não surpreendeu em nenhum momento, é um amontoado de clichês que não trazem nenhum sopro de frescor que os justifique, é o velho mais do mesmo.

O segredo de Shakespeare

"… a história do garoto de Stratford ilustra uma questão de grande importância: a genialidade pode surgir em qualquer lugar. Qualquer um pode ser grande.”

Kate Staley, uma estudiosa de Shakespeare que largou a vida acadêmica para ser diretora de teatro, está prestes a estreiar Hamlet no Globe em Londres que é uma cópia do teatro medieval de Shakespeare, quando recebe a visita de sua antiga orientadora Roz, com quem teve um desentendimento. A visita de Roz não é mera casualidade, ela diz a Kate que descobriu algo e que precisa de sua ajuda, as duas marcam um encontro em outro local, mas a orientadora é assassinada antes que possam se falar, e o Globe é incendiado assim Kate se vê jogada em uma aventura, com direito à perseguição policial e um lastro de incêndios e assassinatos.

Me interessei por este livro porque é sobre o bardo, conheço superficialmente a sua obra, mas sempre tive vontade de aprender mais sobre ele. O pouco que eu conhecia se resumiam nas teorias Oxfordianas de que Shakespeare é na verdade é Edward de Vere, 17º Conde de Oxford e o genial jogo de palavras com os quais ele brincava em seus sonetos.

A história é bem ao estilo dos thrillers históricos como Código da Vinci, uma trama intrincada de mistérios que vão se encadeando ao longo da narrativa, a qual achei um pouco enfadonha em alguns pontos, principalmente na história paralela que entremeia a ação nos dias atuais. Várias “viradas” na história são desnecessárias e a tornam cansativa, mas mesmo assim o livro prende a atenção. Para quem como eu conhece pouco do contexto histórico da vida e da obra de Shakespeare o livro pode parecer confuso tamanha a quantidade de informações e referências, mas ainda assim a leitura é uma boa diversão.

Cartas a um jovem poeta

Paris, fevereiro de 1903. Rainer Maria Rilke (1875-1926) recebe uma carta de um jovem chamado Franz Kappus, que aspira tornar-se poeta e que pede conselhos ao já famoso escritor. Tal missiva dá início a uma troca de correspondência na qual Rilke responde aos questionamentos do rapaz e, muito mais do que isso, expõe suas opiniões sobre o que considerava os aspectos verdadeiros da vida. A criação artística, a necessidade de escrever, Deus, o sexo e o relacionamento entre os homens, o valor nulo da crítica e a solidão inelutável do ser humano: estas e outras questões são abordadas pelo maior poeta de língua alemã do século XX, em algumas das suas mais belas páginas de prosa.

Comecei a escrever esta resenha no mínimo umas vinte vezes e as palavras sempre me parecem inadequadas, pequenas diante desta obra. É difícil falar de um livro que em 90 páginas diz tanto. Muitos dos que leem o blog há mais tempo sabem da minha antipatia pelos títulos de autoajuda e vejam só este livro passa bem longe deste gênero, mas encontrei nele reflexões tão pertinentes que para pessoas como eu, ele se configura em um livro que ajuda a encontrar o conforto de não se sentir só, pois o poeta com suas palavras nos instiga a abraçar os questionamentos que fatalmente não tem respostas.

“Sinto que nunca um homem poderá dar uma resposta às perguntas e aos sentimentos que têm vida no fundo do seu ser. (…) Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos em língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, a um belo dia, sem perceber, a viver as respostas.”

O livro conta com uma edição caprichada da L&PM, com direito à resumo biobibliográfico e também uma apresentação que contextualiza a obra, facilitando a leitura até mesmo para aqueles que não conhecem a obra de Rilke. Esta leitura figura entre as que considero fundamentais para qualquer leitor, e é claro recomendo a todos.

RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Paulo Sussekind. Porto Alegre: LP&M, 2007. (Coleção LP&M Pocket Plus).

Esta leitura é a terceira dentro da temática Biografias e/ou Memórias que corresponde ao mês de fevereior para o Desafio Literário 2011 e com ela eu cumpro a minha meta deste mês, e que venham as leituras de março!

A escrita de um homem só

“Tu usas a imaginação para completar as lacunas da tua vida, prover explicações para as coisas que não entendes, traçar caminhos, entender o passado.”

Que deleite poder ler esta biografia de Moacyr Scliar, faziam 5 anos que ela estava aqui na estante e sempre postergava a leitura. O livro me encantou por ser escrito em capítulos bem diferentes entre si, o que confere à obra uma cadência de leitura muito fluída e dinâmica. O primeiro capítulo, denominado diálogos é uma entrevista em que o autor fala do processo criativo, da leitura no Brasil, sobre a Academia Brasileira de Letras, foram as respostas sobre esta temática que mais me encantaram, descobrir que um autor que eu já admirava pela obra também tinha ressentimento pelo fato de Mário Quintana não ter sido eleito foi digamos, reconfortante, e a admissão pública de que aceitou concorrer a uma vaga na ABL por pressão, por causa do movimento para colocar um gaúcho lá, fez com que eu o admirasse ainda mais. Entendemos também a influência de sua carreira de médico em sua vida pessoal e em sua escrita.

"Acredito, sim, em inspiração, não como uma coisa que vem de fora, que "baixa" no escritor, mas simplesmente como o resultado de uma peculiar introspecção que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas — o sonho, por exemplo. Mas só inspiração não é suficiente".

O segundo capitulo é um linha do tempo sobre a vida e as principais obras e prêmios de Scliar onde podemos conferir que o judaísmo representou um papel muito importante na obra dele. O terceiro capítulo é um ensaio entitulado Moacyr Scliar: tradição e renovação, escrito pelo Dr. Flávio Loureiro Chaves.

O capítulo 4 é a bibliografia do autor e sobre o autor e caramba ela dá uma dimensão exata do quão prolífico Moacyr Scliar é. são mais de 80 livros publicados entre contos, crônicas, ensaios, romances e infanto-juvenis. O capítulo 5 traz uma amostra do talento do escritor em três ótimos contos e o livro se encerra com depoimentos sobre o autor no capítulo 6, dentre os quais o mais emocionante e pungente é o de seu filho, Beto Scliar:

“Nunca entendi direito porque na escola todos se impressionavam quando falavam de Moacyr Scliar. Pra mim ele era simplesmente uma pessoa normal com um trabalho normal.

Ao longo dos anos, comecei a acompanhar silenciosamente o trabalho desse cara, às vezes médico. Comecei a entender a importância do Doutor Moacyr todas as vezes que eu ficava doente.

O Moacyr escritor veio ainda na época de colégio, quando eram obrigatórios os livros dele, aí descobri o Moacyr escritor, com O tio que flutuava. Foi nesse momento que aprendi a gostar de literatura.

O Moacyr da coluna semanal no jornal descobri aos poucos pelos comentários diários vindos de pessoas diferentes, que nem conhecia… Seus textos traziam denúncias, dicas de saúde e vários textos engraçados para divertir seus leitores.

Hoje parei para pensar… este Moacyr… é o meu pai!”

Moacyr Scliar: A escrita de um homem só. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2006. (Coleção Autores Gaúchos)

Esta leitura é a segunda dentro da temática Biografias e/ou Memórias que corresponde ao mês de fevereiro do Desafio Literário.

O Diário de Hélène Berr

Hélène Berr é uma francesa nascida em 1921, filha de Raymond Berr, vice-presidente da empresa química Kuhlmann e de Antoinette Rodrigues-Ély. Os três foram vítimas do holocausto, a mãe foi assassinada assim que chegou a Auschwitz; o pai foi morto em setembro de 1944, envenenado pelo médico que o atendeu na enfermaria de Auschwitz-Monowitz. Sua morte figura na obra de David Rousset, “Les Jours de Notre Mort” (Os dias de nossa morte).

Hélène morreu em abril de 1945 em Bergen-Belsen, depois de ter participado da chamada “marcha da morte” que a transferiu de Auschwitz para o outro campo. Não se sabe se morreu de uma surra ou de tifo. Em todo caso, foi poucos dias antes da chegada das tropas britânicas ao campo de concentração.

Entre 7 de abril de 1942 e 15 de fevereiro de 1944, Hélène manteve um diário, cujas palavras traçam um retrato de como foi a ocupação nazista de Paris. Ela confiou estas páginas à cozinheira da família, Andrée, com a promessa de que esta as faria chegar ao seu noivo, Jean Morawiecki, um rapaz que se envolveu na Resistência e que, como soldado, participou do desembarque na Provence e mais tarde da liberação de campos de concentração na Alemanha.

Ninguém se lança à leitura de uma obra sobre a Segunda Guerra Mundial pensando que será uma experiência fácil e agradável, mas mesmo assim me surpreendi com o livro. Hélène não nos fala dos campos de concentração, ela vai pouco a pouco, as vezes até com certa relutância traçando um cenário em que podemos perceber todo o terror psicológico que precedeu as mortes em massa, como os judeus foram sendo despidos de todos os traços de dignidade.

As primeiras prisões, a obrigatoriedade do uso da estrela amarela, as limitações para comprar até mesmo alimentos vão permeando a narrativa que a princípio não parece se desenrolar em uma Paris ocupada, Hélène frequenta a Sorbonne, faz seu trabalho como bibliotecária voluntária, vai a concertos, à casa de campo em Aubergenville, mas a medida que os dias vão se somando, o horror vai se descortinando, e deixando um sabor de perplexidade, a mesma perplexidade que toma conta de Hélène diante de tantas atrocidades, de tanta intolerância.

O diário de Hélène Berr compartilha conosco desespero e força, é fácil perceber a luta interna que tanto lhe inquietava, abrir mão de fugir para salvar a própria vida e ajudar outros não lhe isentava das dúvidas, ao contrário a lançava em uma tormenta de emoções.

“Por alguns momentos, o sentido da inutilidade de tudo isso me paralisa. Às vezes me questiono e penso que esse sentido da inutilidade não passa de uma forma de inércia e de preguiça, pois diante de todas essas ponderações se ergue um motivo maior que, se eu me convencer de sua validade será decisivo, tenho um dever a cumprir escrevendo, pois é preciso que os outros saibam. A todo momento, durante o dia, repete-se a dolorosa experiência que consiste em perceber que os outros não sabem, que nem sequer imaginam o sofrimento por que outros homens estão passando e o mal que alguns estão infligindo a outras pessoas. E sempre faço esse penoso esforço de contar. Porque se trata de um dever, talvez o único que eu possa cumprir.”

Enfim, a leitura do diário de Hélène foi uma experiência muito intensa e como ela difere de outras obras que já li e que retratam as atrocidades cometidas nos campos de concentração, nos dá uma outra dimensão para a temática enriquecendo e ampliando a compreensão do quão cruel e atroz é essa página da história.

Hélène Berr e Jean Morawiecki

O Diário de Hélène Berr: um relato da ocupação nazista de Paris. [Prefácio de Patrick Modiano] Tradução Bernardo Ajzenberg. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008

Esta leitura foi a primeira do mês de fevereiro, no Desafio Literário, cujo tema é Biografias e/ou Memórias.

Os quatro grandes

“Poirot adora ser misterioso. Nunca daria uma única informação até o último momento possível.”

Poirot está saindo para embarcar em uma travessia transatlântica rumo ao Brasil, quando um homem invade a sua casa, agindo feito um louco, rabiscando o número 4 e sussurrando palavras desconexas sobre Os Quatro Grandes. Esse acontecimento lança Poirot e seu amigo Hastings em uma aventura que envolve intrigas internacionais, armas secretas, laboratórios subterrâneos e fugas de tirar o fôlego.

Durante a leitura algo meio indefinível foi me deixando incomodada com a história, quando comecei a pensar no livro e rever as anotações de leitura para escrever a resenha pude identificar com uma clareza maior que a trama era um pouco desconexa, com uma avalanche de informações desnecessárias e pontas que não se amarravam de forma satisfatória.

De maneira geral gostei do livro, principalmente pela presença do Poirot que sempre engrandece as tramas com seu jeito misterioso e uso magnífico das células cinzentas, e também das atrapalhada do Hastings que a cada leitura se tornam mais pateticamente hilárias, mas mesmo assim ele não figura entre os meus favoritos da grande dama do crime.

Esta leitura faz parte do Projeto Agatha Christie capitaneado pela minha amiga Tatá.

Status:

Páginas lidas: 1.908

Percentual: 10,11%

O livro dos contos enfeitiçados

“- Na boa Fabrício… – ela o interrompeu – … se eu fosse você não saía por aí contando essa história ri-dí-cu-la. Você vai acabar tomando um processo da J.K. Rowling por plagiar Harry Potter.”

O livro dos contos enfeitiçados, reúne sete histórias totalmente diversas unidas unicamente pela magia, esse componente em comum não torna os contos repetitivos, pelo contrário, a autora criou histórias totalmente independentes entre si.

Os contos trazem diversos tipos de magia, nos desejos de uma garotinha que adora amarelo e nem tem consciência da consequência dos seus atos ela se apresenta em estado bruto e aterroriza com a verdade no conto de abertura, indefectivelmente chamado “Amarelo, amarelo”, é impossível ficar indiferente à descoberta da verdade. O humor se faz presente no divertido “Eu detesto futebol”, que mostra um grupo de bruxas que decidem fazer algo contra o esporte que tanto inferniza suas vidas, é hilário quando elas descobrem que o tiro saiu pela culatra.

A magia mostra a sua forma mais pura e poderosa no conto “O verdadeiro poder” pois ela advém do sentimento de doação e amor, apesar da grandiosidade da magia contida nele foi o conto que menos me tocou, em contraponto com ele já na sequência nos deparamos com “O olho vermelho” que é sombrio e opressor nos mostrando que a magia pode se revestir de um simulacro de candura apenas para esconder a sua perversidade, esse conto é daqueles de dar um friozinho na barriga, primeiro ficamos pensando em loucura, depois vamos percebendo que não é bem assim e puft! Lá está ela, a magia.

Os três últimos contos do livro foram os que mais me agradaram, “Final Feliz” é um típico conto de fadas pontuado de bom humor e sarcasmo, dele emana uma sutil alegoria da nossa sociedade que me fez rir muito. Os conselho do Mago da Mata ajudando a princesa são hilários. “O livro dos contos enfeitiçados” é o conto que empresta o título ao livro e mais uma vez voltamos aquele suspense e terror que vão crescendo a cada página e que culminam numa surpresa, digamos assim peculiar, nem em meus mais delirantes devaneios teria imaginado o desfecho desse conto. O último conto, “Sofia” me pareceu uma lenda medieval revisitada, temos lá a moça que não sabe que é bruxa, mas detém um poder muito grande, a bruxa-vilã super malvada, temos o bruxo-mocinho e temos um grande embate, mas não digo isso de maneira depreciativa não, a autora conseguiu imprimir uma personalidade muito própria ao conto, e me fisgou com uma referência pra lá de divertida à série Harry Potter (essa mesma que abriu a resenha), e com personagens cativantes.

A característica que mais gosto nos contos são que por causa do seu tamanho reduzido eles não permitem que o autor enrole muito, que se dedique a fazer digressões totalmente desnecessárias, e a Marta mesmo no conto mais longo do livro tem um escrita leve e fluída, fazendo com que a leitura se torne muito agradável.

estrelinhas coloridas…