Crônicas do Mundo Emerso – A missão de Senar

"Durante a guerra dos Duzentos Anos, muitos habitantes do Mundo Emerso, cansados de tantos combates, deixaram suas Terras para ir viver no mar. O último contato com eles remonta a cento e cinquenta anos atrás, quando os reinos unidos da Terra da Água e do Vento tentaram invadir o Mundo Submerso graças a um mapa conseguido de um habitante daquele reino que voltara a morar em terra firme. A expedição teve um fim trágico: nenhum sobrevivente voltou para contar o que aconteceu. Desde então, nada mais se soube daquele continente e perdeu-se a memória de como alcançá-lo."

Missão de Senar é o segundo volume da trilogia “As Crônicas do Mundo Emerso” e a narrativa agora se concentra como o próprio título já entrega em Senar, e isso traz um frescor para a trilogia tornando-a ainda mais fluida, mas mesmo com este novo enfoque, Nihal ainda é parte importante desta narrativa.

Neste livro acompanhamos o mago, que na função de conselheiro e embaixador do Mundo Emerso parte em busca do Mundo Submerso. O único navio que aceita a missão é o da pirata Aires, pois esta é considerada uma empreitada totalmente suicida.

Enquanto Senar sai em sua missão, Nihal começa a treinar com Ido, gnomo e cavaleiro de dragão e conhece Laio, que se tornará um amigo leal e fiel. Os dilemas e a petulância de Nihal me cansaram um pouco, mas acho que sem estas características ela não seria tão cativante, ficando claro aqui o quanto gosto de personagens irritantes.

Vários elementos novos surgem neste volume e trazem uma riqueza que me encantou, gosto muito quando narrativa vai crescendo em complexidade, quando as personagens vão mostrando mais nuances, quando vou percebendo que há muito mais do que a heroína com uma missão maluca ou do mago altruísta que sai em busca de um povo perdido.

Enfim, gostei ainda mais dos rumos que a história vai tomando ao longo desta narrativa, com elementos que humanizam os heróis e vilões e principalmente com o crescimento e resolução dos dilemas pessoais das personagens.

A sangue frio

Faz um tempão que tenho esse livro e o desafio literário foi uma ótima oportunidade de leitura desta obra que é envolta em mitos e polêmicas. Para minha experiência de leitura é fundamental saber mais sobre o contexto em que a obra foi escrita, por isso fiz uma pesquisa básica sobre o processo de escrita do Truman Capote e descobri coisas bastante peculiares, como o fato de que durante os seis anos de pesquisa ele criou uma relação de amizade com os assassinos Perry Smith e Richard Hickcock, que o livro precisou aguardar a execução dos mesmos para ser lançado.

Essa longa pesquisa feita pelo autor resulta em uma narrativa minuciosa e detalhada dos últimos dias de vida de quatro membros da família Clutter, e também da mente criminosa dos assassinos, no entanto a linha tênue entre a veracidade dos fatos e a romantização dos mesmos foi discutida à exaustão, porém isso não tira o brilho da obra que é muito bem escrita.

O estilo da narrativa de Truman é tão detalhado que em alguns momentos chegou a me cansar, isso só não foi uma constante no texto inteiro porque a história real é contada como um romance de ficção, daqueles bem bons e o domínio do autor sobre o texto deixa ele fluído. O grande trunfo do livro é mesmo o tom da narrativa e a forma como ele é conduzida e nos deixa a leitura inteira em expectativa o que convenhamos é muita coisa em se tratando de uma história amplamente conhecida sobre um homem religioso, uma mãe com tendências depressivas, uma garota, um adolescente e dois ladrões frustrados.

Enfim “A sangue frio” se trata de um livro que agrada tanto a quem procura um bom romance, quanto quem quer conhecer mais sobre uma história real muito bem contada.

Esta leitura é a primeira para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de maio é a leitura de um Livro-Reportagem

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UPDATE:

Caros leitores!

Ainda não consegui identificar o erro que está impedindo os comentários nesta postagem, agradeço a todos que me avisaram do ocorrido, assim que o problema for resolvido aviso vocês.

estrelinhas coloridas…

Da Terra à Lua

Minha terceira e última leitura com a temática Ficção Científica também foi uma obra de Júlio Verne, mas dessa vez a inventividade e a aventura se fizeram presente desde o início da trama, originalmente publicada em capítulos no Journal des Débats, em 1865.

Da Terra à Lua narra a saga dos membros do Clube do Canhão para dar vida à ideia de construir um canhão gigantesco para lançar um projétil à lua. A experiência é proposta por Barbicane, presidente do Clube que vendo como seus membros estão ociosos com o fim da Guerra da Secessão revolve empreender uma aventura até então jamais vista.

Com um humor irônico e sagaz o autor faz a narrativa fluir de forma agradável, com explicações mirabolantes para os percalços que aparecem para o sucesso do empreendimento. É realmente admirável que as personagens em nenhum momento duvidam que tudo dará certo, nem mesmo quando um francês chamado Michel Ardan se propõe a ser tripulante do projétil.

Tudo na trama é gigantesco, o canhão construído na Flórida, a bala oca, o telescópio e a quantidade de pólvora usada são de proporções impensáveis, mas a despeito de todos as adversidades a bala é lançada com sucesso, mas quando se aproximou do satélite ao invés de aterrissar a bala entrou em órbita da própria lua. Aqui podemos realmente ver a veia irônica do texto de Verne, quer coisa mais irônica do que os candidatos a exploradores do satélite se transformarem em satélite dele? Dentro da bala existiam suprimentos para a sobrevivência dos astronautas por 3 meses, o futuro deles é descrito no livro À roda da Lua.

Uma curiosidade sobre esta obra é que o local do lançamento da bala de canhão tripulada, em Tampa, nos EUA fica apenas a 30Km de onde foi lançada a Apollo11, cerca de 100 anos depois.

VERNE, Júlio. Da Terra à Lua. São Paulo: Melhoramentos, 1982.

Esta leitura é a terceira para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de abril é a leitura de obras de Ficção Científica.

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O Raio Verde

Alguma vez você já observou o pôr-do-sol sobre o mar? Já o observou até que a aba superior de seu disco, tocando de leve a superfície da água, estivesse prestes a desaparecer? Muito provavelmente sim, mas você já notou o fenômeno que ocorre no preciso instante em que o corpo celestial irradia seu último raio, e que, quando o céu está limpo, é de uma pureza inigualável?”

Julio Verne é considerado por muito críticos o precursor do gênero Ficção Científica e foi com conhecimento de causa que coloquei ele na lista do Desafio Literário , já li alguns livros dele que me encantaram demais, por isso minhas expectativas para a leitura de O Raio Verde eram altas.

O livro conta a história de Helena, uma moça rica e extremamente mimada pelos tios que após ler um artigo no jornal, decide sair pelo mundo em busca da visão do Raio Verde, cuja lenda diz que quem o enxergar terá certeza quando encontrar seu verdadeiro amor.

Acostumada com leituras de Ficção Científica focadas na aventura e na ação estranhei um pouco o tom desta narrativa que a princípio se mostrou cansativa e enfadonha, focada apenas nos caprichos de Helena, que em nenhum momento causou empatia, na verdade achei-a detestável, cheia de vontade e caprichos. Achei a história muito superficial e sem o aprofundamento técnico tão comum ao gênero e até mesmo à obra do Verne, tudo gira em torno das aventuras que a moça e seus tios passam para ver o tal Raio Verde, que nada mais é que o último raio que o sol emite sobre o mar quando está se pondo, mas as tais aventuras não empolgam, para mim o único alento na leitura foi a figura peculiar de Aristobulo Ursiclos que é uma personagem irritantemente hilariante, enfim foi uma leitura rápida e que não acrescentou nada, fiquei com a sensação de Verne não usou nem uma parte infinitesimal da sua mente brilhante para escrever este livro.

VERNE, Júlio. O Raio Verde. São Paulo: Melhoramentos, 1982.

Esta leitura é a segunda para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de abril é a leitura de obras de Ficção Científica.

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Laranja Mecânica

Quando vi o tema do mês de abril do Desafio Literário não tive dúvidas que ia incluir Laranja Mecânica como livro principal, fazia muito tempo que queria ler esta obra e por motivos que fogem a minha compreensão sempre adiava. Como eu não tinha o livro sai à caça dele, no Skoob descobri que ele tem várias edições e assim que bati o olho na capa da edição de 1962 coloquei na cabeça que queria esta edição, por dias e dias entrei na Estante Virtual para ver se encontrava e nada, isso foi no início de fevereiro, em 29 de março me dei por vencida e encomendei a nova edição da Editora Aleph e não me arrependi, eles fizeram um trabalho impecável.

O livro, escrito em 1962, é narrado em primeira pessoa por Alex, um adolescente que se orgulha dos atos violentos cometidos em uma sociedade futurista que não é situada temporalmente. A narrativa é feita em uma linguagem estranha, permeada de gírias Nadsat, que foi criada pelo autor baseada no idioma russo, confesso que depois de umas 10 páginas eu conferi o glossário que tem no final do livro, muitas pessoas recomendam ler e ir intuitivamente compreendendo o significado dos termos, para mim não funcionou e a leitura fluiu muito melhor depois da leitura do glossário.

Laranja Mecânica é daqueles livros que incomodam, a leitura é difícil não pela linguagem mais sim pelo conteúdo. As reflexões que fatalmente surgiram durante a leitura ficam ecoando na mente, é como a sensação de ficar cutucando um machucado, o principal questionamento que a leitura me provocou foi até ponto a violência, em níveis absurdos diga-se de passagem, é justificativa para privarmos um ser humano do livre-arbítrio? Quando Alex é preso por seus inúmeros crimes, ele é “voluntário” para experimentar a “Técnica Ludovico” que nada mais é do que a manipulação do cérebro por meio de drogas, música e vídeos, tudo isso embasado no princípio de condicionamento proposto por Pavlov e é não é mais capaz de nem sequer pensar nos atos que cometeu sem que isso tenha consequências físicas.

A reintegração de Alex à sociedade é outro momento da narrativa do qual emergem muitos questionamentos, como por exemplo quando ele encontra uma de suas vítimas, é impossível não se incomodar com a situação como um todo, não se questionar que tipo de sociedade produz jovens como Alex. Diante de tantas reflexões que este livro provoca. acredito que esta é uma daquelas leituras que todos devam fazer pelo menos uma vez.

Laranja Mecânica foi adaptado para o cinema pelo diretor Staley Kubrick em 1971, mas sem o capítulo final.

BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Tradução de Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2004.

Esta leitura é a primeira para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de abril é a leitura de obras de Ficção Científica.

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Crônicas do Mundo Emerso – A Garota da Terra do Vento

[…] é o menor e mais afastado país do Mundo Emerso. Localizado no Oeste, de um lado é fechado pelo Saar, o Grande Rio, e do outro é ameaçado pela Grande Terra. Não há um só lugar de onde não se veja a alta torre da Fortaleza, a morada do Tirano. Como sombria e onipresente ameaça, ela domina a vida de todos os habitantes da área. Lembra a todos que não há lugar onde a mão do Tirano não possa alcançar. Apesar disto, o reino ainda continua parcialmente livre.

Relatório anual do Conselho dos Magos, fragmento.

Uma das minhas fontes mais prolíficas de indicações literárias é sem dúvida o Fórum Meia Palavra, a cada visita são feitos acréscimos na lista de futuras leituras, e foi lá que ouvi falar de “As Crônicas do Mundo Emerso” da escritora italiana Licia Troisi e como o tópico do livro tinha uma discussão bem interessante resolvi conferir a trilogia.

No primeiro livro, “A garota da terra do vento” conhecemos Nihal, uma menina cuja vida se resume a passar os dias entre as torres da cidade com sua turma de garotos, brincando de ser guerreira, ela está acostumada a vencer sempre, mas um dia é desafiada por um garoto estranho chamado Senar e pela primeira vez perde uma luta. Esta derrota a leva a decidir que precisa aprender magia, pois acredita que só perdeu porque Senar é um mago. É isso que a leva a descobrir que tem uma tia chamada Soana que além de maga também é conselheira do Conselho dos Magos do Mundo Emerso. Mas antes de iniciar seu treinamento em magia ela tem é surpreendida pela presença de Senar que também é aprendiz de Soana.

Mas os problemas pessoais de Nihal são nada comparados à guerra em que O Mundo Emerso está imerso, o vilão conhecido como Tirano criou seres chamado fâmins única e exclusivamente para comporem seu exército e a fúria dele alcança a Terra do Vento, lançando Nihal em uma aventura muito maior do que ela jamais imaginou.

Gostei muito da história, a narrativa é dinâmica e fluída, não existem digressões nem pontas soltas, nada está ali por acaso tudo tem sentido e pertinência para o desenrolar da história e isso me conquistou muito. A linguagem a princípio me causou um certo estranhamento principalmente pelo uso do tu, ao invés de você e veja bem isso é bastante curioso porque eu estranhei um livro escrito da mesma forma que eu falo apenas por que isso não é usual, mas no decorrer da leitura isso acabou criando uma identidade muito forte para a mim.

Licia criou personagens fortes e com dilemas aprofundados que enriquecem a obra de tal forma que até mesmo o contexto bastante comum do universo fantástico, com magia, dragões e guerras não ofusca a riqueza da história que ela construiu.

TROISI, Licia. Crônicas do Mundo Emerso: Livro 1 – A Garota da Terra do Vento. Tradução de Mario Fondelli. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

O Clube Filosófico Dominical

Eu adoro livros de mistério e investigações e quando encontrei “O clube filosófico dominical” de Alexander McCall Smith achei o título irresistível, some-se a ele a promessa de uma história que junta uma personagem que é filósofa, uma morte ocorrida em uma sala de concertos e que se passa em Edimburgo, Escócia, acrescente ainda nessa equação o fato de ter lido outros livros do autor que em agradaram e pronto minhas expectativas estavam nas alturas.

É claro que esperando tanto assim desta leitura era fato que eu iria me decepcionar, e realmente o gosto amargo da decepção me perseguiu em cada linha, principalmente porque ela veio de onde eu mesmo esperei.

O livro conta a história de Isabel Dalhousie, filósofa escocesa que assiste à morte de Mark Fraser, um total desconhecido quando este cai de uma galeria do teatro. No momento da queda os olhares dos dois se cruzam e partir dai Isabel se sente com a obrigação moral de descobrir o que aconteceu com o rapaz, sim, é isso mesmo só porque os olhos dela cruzaram com o dele por uma fração infinitesimal de tempo, ela acha que tem o direito, opsss o dever de chafurdar na vida de um completo desconhecido.

As divagações filosóficas de Isabel são no mínimo risíveis de tão rasas e infundadas, ela se choca com o jornalista que vai a sua casa para saber mais sobre a morte do rapaz, quando ele lhe diz que vai procurar a família do morto, mas não vê nenhum mal em ela própria fazer “investigações” por conta própria, pois ela reveste suas motivações com um simulacro de moralidade. Este capítulo causa um estranhamento tão grande diante da postura e da fala do jornalista que cheguei a pensar que a trama iria engrenar e ficar mais interessante, no entanto foi só mais uma decepção.

O final do livro reserva algumas surpresas positivas pois, ao contrário do que imaginei a solução do mistério não é fruto direto das investigações mirabolantes de Isabel, ela não se mostrou uma boa detetive afinal e isso me agradou muito, assim como o desfecho da trama em si.

Enfim preciso ressaltar que o tal do clube filosófico dominical do título, não passa de uma promessa, ele é apenas citado em algumas falas do livro e nada mais, o que convenhamos é um desperdício, eu esperava bem mais do livro, fiquei com uma sensação de coisas inacabadas, ele foi um dessas promessas maravilhosas que não se concretizou.

A edição da Companhia das Letras como sempre é ótima, e aqui comento uma curiosidade, eu tenho vários livros deste gênero da editora e todos seguem a mesma linha visual, com o nome do autor numa tarja superior e com as bordas das páginas coloridas e sempre pensei que se tratasse de um coleção ou série, mas não é só mesmo a identidade visual que é assim, eu adoro.

SMITH, Alexander McCall. O Clube Filosófico Dominical. Tradução de Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

Netto perde sua alma

“Eu matei índio. Matei negros. E matei brancos. Mais que tudo, matei castelhanos: argentinos, paraguaios, chilenos. Matei portugueses. Matei galegos. Aqui neste quarto eu ficava matutanto comigo mesmo nessa gente toda que matei e me dava um peso enorme no coração.”

Finalmente em minha terceira leitura para o mês de março encontrei os elementos que acredito que devam estar em um livro para ele ser considerado épico. Eu tenho um apreço muito grande pelos autores gaúchos, minha biblioteca de literatura brasileira é composta quase totalmente por eles, alguns chamam isso pejorativamente de bairrismo, eu penso mais em uma espécie de identificação, é fácil para mim imaginar os pampas, as estâncias no meio do nada, e principalmente as personagens. Aqui também entra uma espécie de mitificação que é muito comum ao gaúcho, nós que temos vento minuano correndo nas veias, temos tendência em exaltar e romantizar nossos feitos, nossas guerras e principalmente nossos heróis.

No romance “Netto perde sua alma”, de Tabajara Ruas é fácil perceber esta mitificação tanto em relação à guerra quanto ao misterioso General netto, responsável pela República Rio-Grandense, o autor mesmo salienta que o livro é antes de tudo uma ficção histórica sobre um tempo histórico e que as notas biográficas não são exatas, portanto encarei o livro como o que ele é de fato, ficção e apesar da exatidão de alguns dados em nenhum momento percebo este Netto como o real, aquele que é considerado herói farroupilha e que participou de todas as guerras de fronteira e das revoluções que tumultuaram a região sul do Brasil no século XIX.

A narrativa está estruturada em seis capítulos, todos eles datados e situados geograficamente. No primeiro capítulo estamos em primeiro de julho de 1866 e encontramos o General Netto se recuperando no Hospital Militar de Corrientes, na Argentina, lá ele se vê envolvido com o drama do Capitão de Los Santos que acusa o cirurgião francês de ter amputado suas pernas sem necessidade e reencontra o sargento Caldeira, e com ele relembra sua participação na guerra e também do encontro com Milonga, escravo que ainda muito jovem se alistara no Corpo de Lanceiros Negros. Estas memórias nos mostram o claro contraponto entre as motivações que levaram tão diversos homens à lutarem no mesmo lado na guerra, enquanto Netto lutava por ideias, os negros Caldeira e Milonga lutavam por suas vidas.

O segundo capítulo, nos leva à reunião no morro da Fortaleza em 8 de abril de 1840 e se centra nos longos anos da guerra, é aqui também que presenciamos o encontro de Netto com Milonga e deste com Caldeira. No capítulo 3, retrocedemos quatro anos e estamos no Dorsal das Encantadas mais precisamente no dia 11 de setembro, nove dias antes da declaração de independência (20 de setembro) feita pelo General Netto, mas aqui, apesar de declarada a guerra, a ação é apenas sugerida. O quarto capítulo que tem como título “Último verão no continente”, datado de 2 de março de 1845 nos mostra a preparação de Netto após terminada a revolução para voltar para suas terras, ele é acompanhado por Caldeira, no entanto não contam que Milonga agora aleijado irá se revoltar contra Netto o que culminará em uma tragédia.

No quinto capítulo estamos em Piedra Sola no dia 25 de junho de 1861 e somos confrontados com dois diálogos de Netto, com o embaixador inglês e com Maria Escayola, futura mulher do general. Percebe-se nestes diálogos a clara dicotomia entre a vida pública que o leva as guerras e as lutas pelas ideias e a vida privada na qual ele se dedica a construir uma família. Fica claro aqui que as guerras e suas motivações políticas e financeiras sempre acabam por trazer danos a vida dos indivíduos, sejam eles quem forem.

No último capítulo voltamos ao dia 1o de julho de 1866, em Corrientes e retomamos a mesma cena inicial, onde Netto em meio aos delírios causados pela doença acredita receber a visita do sargento Caldeira e juntos em uma cena muito bela e idílica rumam para a canoa que levará o general até a outra margem.

“Olhou para o céu escuro. Lembrou-se da lua no dorso dos cavalos. Procurou a lua, mas só encontrou o reflexo prateado do seu resplandor. Aproximou-se da canoa pisando vagaroso a areia macia, já sem pressentimentos, sem cautela, sem olhar para o Vulto, sentindo a mordida fria do ar, dominando o narcisismo desatento, recuperando com satisfação a tolerância, a paternalidade, sentindo-se sagaz e dissimuladamente majestoso. Olhou a praia deserta. (Agora, o vento estava a favor). Netto empurrou a canoa e saltou para dentro dela.”

Enfim foi uma leitura envolvente e ágil, Tabajara Ruas conseguiu me prender do início ao fim da narrativa, devorei as 164 páginas do livro em duas horas e essa característica me fez pensar sobre um assunto bastante popular: os spoilers. Bem, eu já sabia de antemão de quase todos os fatos históricos narrados no livro, eu sabia como o General Netto morreu, e saber destes fatos não fizeram a experiência da leitura ser menos agradável, ou transformadora, por isso mesmo ela valida minha ideia de que a leitura é uma experiência única para cada leitor e mesmo sabendo o destino não deixo de aproveitar a viagem que ela me proporciona, neste caso considero o percurso mais importante que o destino.

Em 2001 o livro foi para as telonas com o ator Werner Schüneman no papel do General Netto. Ganhou quatro Kikitos de Ouro, nas categorias de melhor filme – júri popular, melhor montagem, melhor trilha sonora e prêmio especial do júri.

RUAS, Tabajara. Netto perde sua alma. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

Esta leitura é a terceira para o Desafio Literário 2011 cujo tema do mês de março é a leitura de obras épicas.

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O barão nas árvores

Ítalo Calvino é um desses autores que sempre ouvi falar muito bem e já nutria mesmo uma certa admiração sem nunca ter lido nada dele, era uma admiração fruto de uma memória coletiva, encharcada pelas percepções de todos que o lerem foi que me lancei a leitura de “O barão nas árvores” e posso iniciar já avisando de antemão que esta será uma resenha totalmente passional, sem meio-termo, tamanha paixão que hoje tenho pelo autor italiano (ah e não me venha dizer que ele nasceu em Cuba ok? Isso já é assunto superado).

O título deste livro peculiar, muitos considerariam o tão famigerado spoiler, pois ele sozinho já fala em essência sobre o que é a história, mas não se deixem enganar os menos atentos, a epopéia de Cosme Chuvasco de Rondó é muito mais do que o fato de que em 15 de julho de 1767 ele subiu em uma árvore e nunca mais desceu.

A narrativa é conduzida pelo irmão caçula de Cosme, que ao mesmo tempo que fala com paixão das aventuras vividas pelo irmão, também é possível perceber um ressentimento pelo distanciamento que a escolha de Cosme lhes impôs.

A princípio estava imaginando que o foco da história iria ser as estratégias que Cosme usaria para se adaptar na vida nas árvores, mas foi uma grata surpresa descobrir que o que achei ser a trama principal era só uma coadjuvante para questionamentos e alegorias bem mais profundas e pertinentes.

Um episódio que me marcou muito pois fala da relação de Cosme com os livros, é quando ele conhece o temido ladrão João do Mato e este se apaixona pela literatura e abandona a vida de crime para ficar lendo livros e mais livros que Cosme lhe fornece, depois de uma armadilha preparada por outros ladrões, João é preso e o seu desespero é que não saberá o final do livro que lia.

“Finalmente, saiu com os braços cheios de bolsas com moedas. Correu quase às cegas para a oliveira combinada.

Aqui está tudo que havia! Devolvam Clarisse!

Quatro, sete, dez braços se lançaram sobre ele, imobilizaram-no das costas até as canetas. Tinha sido preso por um grupo de guardas e amarrado como um presunto.

– Você há de ver Clarisse quadradinha! – e o levaram para o cárcere.” (pg. 106)

A cena da morte de joão é dessas que ficam ecoando em nossas mentes por muito tempo, é tão verdadeira e singela que é impossível não se emocionar.

“O processo foi demorado; o bandido resistia ao cerco da corda; para fazê-lo confessar cada um de seus inúmeros crimes eram necessários dias e dias. Todo os dias, antes e e depois dos interrogatórios ficava escutando Cosme, que continuava a leitura. Terminada Clarisse, sentindo-o um tanto triste, Cosme achou que Richardson, para quem está preso, talvez fosse meio deprimente; e preferiu ler para ele um romance de Fielding, cujo enredo movimentado lhe compensaria um pouco a liberdade perdida. Eram os dias do processo, e João do Mato só tinha cabeça para os casos de Jonathan Wild.

Antes que o romance fosse concluído, chegou o dia da execução. Na carroça, acompanhado por um frade, João do Mato fez sua ultima viagem como ser vivo. Os enforcamentos em Penúmbria eram feitos num alto carvalho no meio da praça. Ao redor, o povo fazia um círculo.

Já com a corda no pescoço, João do Mato ouviu um assovio entre os galhos. Ergueu o rosto. Descobriu Cosme com o livro fechado.

– Conta como termina – pediu o condenado.

– Lamento dizer, João – respondeu Cosme – , Jonas acaba pendurado pela garganta.

– Obrigado. O mesmo aconteça comigo! Adeus! – E ele mesmo deu um pontapé na escada, enforcando-se.” (pg.107-108)

Outra coisa fascinante no livro são as soluções muito engenhosas que possibilitam que seu protagonista viva no topo das árvores, é uma delícia ler como Cosme resolve com projetos de engenharia as inúmeras dificuldades de se viver, literalmente pulando de galho em galho.

Com este livro Calvino deixou uma marca em mim, dessas que não se apaga facilmente, pois ao nos contar a história de Cosme ele nos mostra que a vida pode ser vivida como quisermos, não importa se você quer ir contra o senso comum, se precisa romper paradigmas sempre é possível vivermos de acordo com aquilo que acreditamos.

Depois de terminada a leitura, descobri que o livro é o segundo de uma trilogia chamada “Os nossos antepassados”, junto com O cavaleiro inexistente e O Visconde Partido ao Meio. Com certeza vou conferir os outros dois.

O grupo O Cordel Encantado fez uma música inspirada no livro, também não os conhecia, mas achei o trabalho muito original e criativo.

Preciso falar ainda da edição caprichada da Companhia das Letras que mesmo na versão de bolso do livro agrada seus leitores com uma capa belíssima e papel pólen e a excelente tradução de Nilson Moulin.

 

As virtudes da casa

"Um fancês. Um francês? Todos indagaram ao mesmo tempo do pai, que exibia uma carta floreada com sinete de armas em brilhante lacre. Sim, teremos um francês em casa, chamado Félicien de Clavière, disse o pai, pousando o papel sobre a mesa. Um francês vagamundos, metido a homem de ciência, dizem que junta todas as plantas que encontra pela frente." (pg. 09)

Quando fiz minha seleção para o Desafio Literário, a escolha das obras de março foram as que mais me deram trabalho, e minha primeira leitura me deixou com um gosto de decepção neste quesito porque apesar de ser um dos melhores livros que li ainda assim não consegui identificar o traço épico, e foi com uma certa frustração que me lancei à leitura do segundo livro escolhido, mas este me reservou algumas surpresas.

A vida na Estância da Fonte sempre seguiu seu próprio ritmo, ditado pelo Coronel Baltazar Antão Rodrigues de Serpa, mas a chegada do botânico francês Félicien de Clavierè vai subverter a ordem das coisas na casa e no cotidiano dos seus moradores.

Antes da chegada do visitante, Baltazar Antão parte para a guerra e deixa ordens para que o francês seja tratado com o melhor. No entanto sua esposa Micaela decide que não irá receber o estrangeiro, ficando reclusa no quarto, cabe assim aos filhos Isabel e Jacinto fazerem as honras da casa. Mas esta resolução não dura muito tempo e ela acaba não apenas saindo do quarto, como dispensando atenções além das que cabiam à senhora da casa, e assim a trama vai se revelando e junto ela traz a perplexidade diante de tão bela e trágica história.

A narrativa é dividida em quatro novelas, nas três primeiras temos a mesma história vista por três personagens diferentes, na quarta novela as narrativas se fundem e temos então o desfecho desta história rica e intrincada.

Eu gosto muito da escrita do Luiz Antonio de Assis Brasil ele tem uma cadência e um ritmo muito próprios de conduzir a narrativa e foi com conhecimento de causa que me me lancei a esta leitura, mas ainda assim me surpreendi muito, pois a todo momento a leitura tinha ecos de Agamemnon, uma das poucas peças gregas que conheço e isso me deixou um pouco mais motivada com a leitura e esta motivação foi crescendo conforme a história ia se desenrolando.

As personagens criadas são tão humanas que chegam a causar um certo desconforto, uma vontade de entrar na história e por vezes esbofetar Jacinto ou Micaela, que são duas personagens tão ricas psicologicamente que ainda ressoam na minha cabeça, dias e dias depois da leitura.

Confesso que mesmo com todas evidencias apontando para o desfecho que se concretizou eu esperei um reviravolta, e é claro que isso deixou aquele gosto amargo de quando uma história não acaba como esperamos, mas ai é que reside a genialidade do Luiz Antonio de Assis Brasil, se o final fosse o que eu estava esperando a obra não seria grandiosa, densa e encharcada de inquietações, seria apenas mais um romance entre tantos, mas assim sem nenhum vírgula fora do lugar ele é simplesmente magnífico.

Enfim é claro que adorei o livro, é uma história universal vivida por personagens presos nos confins dos pampas onde a análise da complexidade humana através da visão de três personagens distintas nos brinda com uma história de paixões, traições e desejos.

Não posso concluir essa resenha sem citar que me emocionei demais com a dedicatória, datada de 1985:

Para

MOACYR SCLIAR,

escritor de maduro ofício,

amigo constante,

pelo profundo respeito às palavras

e às pessoas que as escrevem.