O jardim de Ossos

"Tudo aconteceu há 58 anos. Você era apenas um bebê na época e não pode se lembrar. Em verdade, eu mesmo quase me esqueci. Mas, nesta última quarta-feira, descobri um velho recorte de jornal que estivera todos esses anos dentro de meu antigo exemplar de Anatomia de Wistar e me dei conta de que, a não ser que falasse logo, tais fatos certamente morreriam comigo. Desde a morte de sua tia, sou a única pessoa que sabe da história. Todos os outros estão mortos." (pg. 10)

Quando vi que o tema de março do Desafio Literário 2012 era Serial Killer desanimei, ando sem paciência e estômago para livros muito pesados com descrições detalhadas e gráficas de crimes e atocidades em geral, e sendo assim coloquei só dois livros na lista apenas para não deixar o mês passar em branco, por isso a leitura de O jardim de ossos, Tess Gerritsen foi uma ótima surpresa.

O livro conta duas histórias uma que se passa nos dias atuais e outra datada de 1830, é claro que as duas estão interligadas. Tudo começa quando Julia, que comprou um casarão construído em 1880 encontra uma ossada em seu jardim, depois de uma investigação a polícia determina que o caso é para especialistas em antropologia visto que os ossos estavam enterrados muito antes da construção da casa.

Com esta descoberta Julia acaba conhecendo Henry, primo da antiga proprietária da casa e que possui uma série de caixas com documentos, cartas e jornais antigos que pode ser a chave para conhecerem a identidade da mulher enterrada no jardim. Junto com Julia e Henry somos levados a 1830 para conhecer Norris Marshall, Rose Connolly, Oliver Wendell Holmes e o Estripador de West End.

As narrativas se intercalam tecendo uma trama intrincada e inteligente, a história que se passa em 1830 é muito rica e detalhada e nos conta como o jovem estudante de medicina Norris é acusado de ser um assassino em série e a sua luta para provar que é inocente, ele conta com a ajuda da imigrante irlandesa Rose e do amigo Oliver, juntos eles vão juntando as peças do quebra-cabeça para descobrir quem é o verdadeiro Estripador de West End.

Tess Gerritsen tem aquela incrível capacidade de escrever de forma que fisga o leitor, com reviravoltas e suspense de tirar o fôlego é quase impossível largar a leitura. Sem dúvida é uma autora que vou procurar conhecer mais, pois ela conseguiu construir uma narrativa empolgante, recheada dos clichês do gênero, é claro, mas tão bem escrita que é fácil nos deixarmos levar pelas meticulosas e precisas descrições e quando nos damos conta já estamos totalmente envolvidos com a história.

GERRITSEN, Tess. O Jardim de Ossos. Tradução de Alexandre Raposo. Rio de Janeiro: Record, 2009.

Esta leitura faz parte do Desafio Literário 2012, cujo tema de março é Serial Killer.

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Ler para crescer: Os lobos dentro das paredes

"Se os lobos sairem de dentro da parede está tudo acabado"

Quando o guri anunciou que queria ler uma história de terror logo pensei em Os lobos dentro das paredes do Neil Gaiman, fazia tempo que eu queria ler uma obra dele escrita para crianças e essa seria uma ótima oportunidade.

Lucy mora com os pais e o irmão em um casarão antigo e começa a ouvir barulhos estranhos dentro das paredes, são ruídos "furtivos, rastejantes e amarrotados", ela acredita que existem lobos dentro das paredes, mas seu pai acha que são ratos, o irmão fala em morcegos e a mãe está certa de que o que ela ouve são apenas camundongos. Diante da aflição crescente e insistente da menina eles dizem: "se os lobos saírem de dentro da parede está tudo acabado". Gaiman é conhecido por trazer para seus livros temáticas pouco exploradas no universo infantil e no caso desta obra a insegurança é focada de forma muito interessante pois os lobos dentro da parede representam que a casa já não é mais sinônimo de proteção, nos fazendo mergulhar em uma história que é aterradora muito mais pelos sentimentos vividos pelas personagens do que pela figura dos lobos.

Uma das coisas mais legais é a forma como Lucy enfrenta os seus medos e o perigo, é o tipo de história que realmente assusta, mas também diverte e traz nas entrelinhas um importante exemplo de superação através da inteligência e da coragem. Dave McKean é o responsável pela arte do livro e com seu traço inconfundível fez uma obra belíssima aos olhos, o ar sombrio, sinistro e assustador complementa o texto de forma perfeita.

GAIMAN, Neil. Os lobos dentro das paredes. Tradução John Lee Murray. Rio de Janeiro: Rocco, 2006

Matilda

"O Sr. Losna olhou irritado para Matilda. Ela não se movera. Já tinha aprendido a bloquear os ouvidos contra os sons desagradáveis da televisão. Continuou a ler, imperturbável, e por alguma razão isso enfureceu o pai. Talvez sua raiva tenha aumentado por ver sua filha desfrutando de alguma coisa que ele não alcançava" (pg.34)

A leitura de Matilda, Roald Dahl se mostrou ainda mais encantadora do que esperava. Já conhecia a história por sua versão cinematográfica e como adoro o filme estava com expectativas bem altas, e isso não atrapalhou a leitura em nenhum momento, pois apesar das indefectíveis modificações que a transposição de linguagem acarreta a essência da história é a mesma.

Matilda é uma menina muito especial, que nasceu em uma família que não lhe dá a mínima atenção. Aos 3 anos ela já sabe ler mas os pais acham que livros são perda de tempo, o pai é um desonesto vendedor de carros usados, a mãe negligencia a filha para passar as tardes jogando bingo e o irmão parece nem ao menos se dar conta de que tem uma irmã, nesse contexto desolador, a menina encontra forças na literatura, as vozes de milhares e milhares de histórias ajudam amenizar seu sofrimento.

A entrada de Matilda na escola é marcada por contrastes ainda mais acentuados, lá ela se depara com a figura da diretora que despreza a infância e considera as crianças seres desprovidos de direitos, já a professora da classe da menina é o extremo oposto, gentil e atenciosa logo ela percebe o incrível potencial intelectual da menina. Mistérios e aventuras e pequenas vinganças se misturam na narrativa de forma encantadora e a maneira como Roald Dahl a conduz é fantástica.

O livro é acima de tudo uma metáfora sobre a perseverança, Matilda podia muito bem ter se conformado com a família que tinha e se enquadrado nos padrões que os pais consideravam adequados, mas ela não aceitou e mesmo sendo tão pequena conseguiu mudar a sua vida.

Esta é a lista dos primeiros livros adultos que Matilda leu:

Grandes Esperanças, de Charles Dickens

Nicholas Nickleby, de Charles Dickens

Oliver Twist, de Charles Dickens

Jane Eyre, de Charlotte Bronte

Orgulho e Preconceito, de Jane Austen

Tess, de Thomas Hardy

Kim, de Rudyard Kipling

O Homem Invisível, de H.G.Wells

O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway

O Som e a Fúria, de William Faulkner

As Vinhas da Ira, de Jonh Steinbeck

Os Bons Companheiros, de J.B.Priestley

O Condenado, de Graham Greene

A Revolução dos Bichos, de George Orwell

Esta leitura faz parte do Desafio Literário 2012, cujo tema de Fevereiro é a leitura de livros cujos títulos sejam nomes próprios.

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Maya

” – Qual é então a finalidade da vida?

– Já disse que não sei. Só digo que o Universo não carece de sentido. A evolução da vida na Terra é um processo muito mais espetacular do que o mito de criação mais grandiloquente.” (pg. 285)

Faz anos que Maya, do Jostein Gaarder me espreita na estante, pelo menos uns 9 anos, simplesmente porque eu sempre me senti um pouco intimidada pela temática do livro, que gira em torno das eternas perguntas: Quem sou eu? Qual o objetivo da minha existência? Não sei bem porque desse sentimento até porque já li várias obras do autor e gostei de todas elas, Gaarder tem um estilo de escrita que me agrada muito, ele consegue criar uma estrutura ficcional fantástica e a usa para refletir sobre questões fundamentais da humanidade, que no caso de Maya é a origem do Universo e da vida.

Para dar conta de refletir sobre um assunto tão complexo o autor dá voz a um paleontólogo norueguês, um casal de espanhóis e um escritor inglês. O ano em que se inicia a narrativa é 1998, e os quatro estão em Taveuni, uma pequena ilha da República das Ilhas Fiji, que supostamente será o primeiro lugar do planeta a adentrar o novo milênio. A interferência de uma salamandra que todas as noites sobe na garrafa de gim de Frank e começa repreende-lo pela maneira como os seres humanos, ou melhor os primatas da sua laia, agem como se quisessem com todas as forças destruir o planeta, é hilariante, os diálogos filosóficos entabulados pelo palentólogo e pelo anfíbio fazem a leitura leve e divertida.

“Quando cai a noite, por volta das seis da tarde, a palavra viva passa a ser protagonista. Talvez uma pessoa tenha estado pescando, talvez outra tenha tido uma experiência nos bosques profundos, uma terceira pode ter topado com um americano perdido na foz de algum rio: todos têm algo a contar. Também se mantém viva uma antiga tradição de mitos e lendas, porque em Taveuni não há outra diversão além daquela que cada um cria.” (pg. 40)

Sempre que leio Jostein Gaarder a imagem que se forma é daquelas bonequinhas russas em que uma fica dentro da outra, as Matrioshkas, há sempre uma história dentro da história e isso me fascina, porque nada é o que parece. Saindo de Taveuni, somos levados por diversos lugares e tempos, para compreender como fatos aparentemente desconexos como as piruetas de um anão no porto de Cádiz, em 1790, o conceito de maya da filosofia hindu, a presença do pintor Goya na casa de campo da duquesa de Alba, no fim do século XVIII, as tradições dos ciganos andaluzes e até mesmo o o período devoniano em que apareceram os primeiros anfíbios se interligam.

Com reflexões tão densas poderia se imaginar que a leitura é enfadonha ou cansativa, mas não, e isso é o que mais em encanta no autor, ele consegue nos levar por caminhos e assuntos tortuosos de forma que o percurso seja agradável, quando percebemos já estamos mergulhados na sua trama intrincada, querendo saber como ele vai amarrar todas as pontas de tão fantástica história.

“Criar um mundo inteiro tem necessariamente considerada uma façanha louvabilíssima, mesmo que tivesse causado ainda maior admiração se um mundo inteiro tivesse sido capaz de criar a si mesmo. E vice-versa: a exeriência de ter sido criado não é nada em comparação com a incrível sensação de quem criou a si mesmo do nada e pode ficar de pé sem a ajuda de ninguém.” (pg.53)

A leitura de Maya só reforçou a adimiração que tenho pelo autor e pela força de sua escrita, ele consegue trazer para o campo da literatura debates e reflexões que considero muito pertinentes para a compreensão do ser humano, sem dúvida uma obra enriquecedora.

“somos o enigma que ninguém sabe resolver” (pg. 64)

“Precisa-se de bilhões de anos para criar um ser humano. E ele só precisa de alguns segundo para morrer.” (pg. 391)

GAARDER, Jostein. Maya. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Esta leitura faz parte do Desafio Literário 2012, cujo tema de Fevereiro é a leitura de livros cujos títulos sejam nomes próprios.

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Caim

“A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”. (pg. 88)

José Saramago sempre foi um escritor polêmico, daquele tipo que mesmo quem nunca leu um livro, sabe do que se trata, algumas de suas obras chocam, são provocativas e acima de tudo questionadoras. Ao se apropriar da história de Caim, o primogênito de Adão e Eva e assassino do irmão Abel, ele a tingiu com tonalidades da fantásticas, onde até mesmo viagens no tempo são permitidas.

A narrativa tem início com o crime de Caim e sua condenação de vagar errante pelo mundo, nos levando através de inúmeras passagens do antigo testamento mostrando as interferências de Caim. O tom questionador e o humor irônico permeiam toda a narrativa com o propósito mais do que declarado de questionar as decisões de divinas. Uma das passagens mais divertidas se dá, sem dúvida, quando Abraão está prestes a sacrificar o filho Isaac e é impedido não por um anjo, mas sim, por Caim. O anjo chega logo depois, alegando que o atraso, se deu devido a uma falha mecânica na sua asa. Este trecho apesar do tom de comédia vem encharcado de questionamentos em relação à fé sem reflexão.

“Então o senhor é capaz de tudo, do bom, do mau e do pior, Assim é, Se tu tivesses desobedecido à ordem, que sucederia, perguntou isaac, O costume do senhor é mandar a ruína, ou uma doença, a quem lhe falhou, Então o senhor é rancoroso, Acho que sim, respondeu abraão em voz baixa, como se temesse ser ouvido, ao senhor nada é impossível, Nem um erro ou um crime, perguntou isaac, Os erros e os crimes sobretudo, Pai, não me entendo com esta religião.” (pg.82)

Saramago elegeu trechos bíblicos controversos justamente para provocar, para levar o leitor à reflexão diante dos atos divinos mais questionáveis, mais absurdos. E com ele não existem contemporazições, não existem meios-termos, todo seu ceticismo, seu declarado ateísmo pulsam neste livro, que escancara uma figura divina cruel e vingativa.

A leitura de Caim é fluída, ágil e instigante, até mesmo para os que não estão familiarizados com o peculiar uso da pontuação que Saramago faz em suas obras. O debate filosófico e o confronto ideológico entre Caim e Deus fazem com que o livro seja, como disse Pilar, esposa de Saramago, um livro que “não deixará indiferentes os leitores”.

Esta leitura faz parte do Desafio Literário 2012, cujo tema de Fevereiro é a leitura de livros cujos títulos sejam nomes próprios.

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Memórias Gastronômicas

"Queridos leitores, rogo a Deus que lhes resguarde o apetite, o estômago – e os poupe de fazer literatura…"

O curioso e delicioso livro Memórias Gastronômicas de Alexandre Dumas nos revela uma faceta peculiar do escritor de mais de 300 livros, entre eles os clássicos O Conde de Monte Cristo, Os três Mosqueteiros e Memórias de um Médico, o de amante da boa mesa, mas não apenas um amante qualquer, mas sim um dedicado, empenhado e acima de tudo apaixonado pelos prazeres da culinária. Esta obra é a introdução do "Grande dicionário de culinária" que foi publicada originalmente com a colaboração do jovem Anatole France, aqui ela se apresenta dividida em duas partes

Por toda a narrativa é fácil perceber o entusiasmo do autor pela comida, essa admiração salta aos olhos e seja o texto uma recordação pessoal ou discorrendo sobre personalidades históricas, como Bonaparte e Carême, são sempre muito fluidos e agradáveis de ler. Na segunda parte da narrativa Dumas nos leva através dos tempos desde a primeira maçã até a inauguração do primeiro restaurante em Paris, as referências históricas, bíblicas, mitológicas e o tom cômico fazem a leitura da história da gastronomia ainda mais divertida.

"Há três espécies de apetite…

2. O que sentimos mesmo sem fome, depois de já termos saboreado um prato de respeito, o que consagrou o provérbio: Comer e coçar é questão de começar…"

O livro é encerrado com um "Cardápio D’Artagnan" que inclui receitas de Bouilabaisse à la Nîmoise, aspargos fritos, filés de pato com laranja, Tournedos, Bolo à la Madeleine, e dos molhos Ravigote, Poivrade e Espanhol, todas retiradas do Grande dicionário de culinária.

O livro sem dúvida agrada ao que gostam de boa literatura e boa mesa, a edição caprichada da Jorge Zahar Editor conta com tradução, apresentação e notas de André Telles.

"Minha reputação culinária… promete apagar minha reputação literária."

Esta leitura faz parte do Desafio Literário 2012, cujo tema de janeiro é Literatura Gastronômica.

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Ficção de Polpa – Volume 1

Ficção de Polpa (volume 1), da Não Editora, foi um livro que chegou até mim com recomendações muito positivas, de pessoas cuja opinião são sempre relevantes, então como não poderia deixar de ser comecei a leitura com a expectativa nas alturas, e elas foram superadas, sim isso mesmo, apesar de esperar muito da coletânea ela ainda assim conseguiu me surpreender 😉

O livro já me conquistou na apresentação, do organizador Samir Machado de Machado, na qual ele conta quais são as origens do livro, adoro saber como surgem os livros que leio, quem são as pessoas por trás das histórias que me cativam, e isso já foi um ótimo prenúncio do que viria a seguir.

“Psicopatas! Monstros! Alieneigenas! Zumbis! Aos escritores aqui presentes, foi feita uma proposta: criar um conto de horror, ficção científica ou fantasia com completa liberdade temática. O resultado engloba assuntos tão populares quanto diversos: serial killers, crimes hediondos, delírios domésticos, demônios, monstros, mortos-vivos, alienígenas e toda sorte de argumento capaz de despertar a criatividade dos dezesseis autores aqui reunidos.”

Como é normal em uma coletânea alguns contos nos agradam mais outros menos, mas nesse caso em especial, não teve nenhum que eu não tenho gostado, outros eu simplesmente amei. Uma característica da maior parte dos contos e que é muito bacana, é que eles não são situados espacialmente, as histórias podiam ter acontecido em qualquer lugar, acho que isso contribui e muito para criar o clima de horror.

Dentro os contos que mais gostei estão “O ventre” da Roberta Larini, “Os internos” de Gustavo Faraon e “Desvio” do Antônio Xerxenesky e esse eu li com um certo estranhamento, porque parecia que já tinha lido a história, uma espécie de déjà vu, para só então me dar conta do motivo: esse conto foi adaptado para o Histórias Curtas e eu já tinha assistido, foi interessante, até porque o original é sempre mais rico. Quem quiser conferir o curta , é só ir aqui.

Gostei muito da faixa bônus, “O cão de caça” de H.P. Lovecraft o que só fez aumentar minha vontade de conhecer mais a obra do autor, os mesmo amigos que recomendaram a leitura do Ficção de Polpa, são entusiastas do obra deste mestre do terror e agora posso compreender porque e fazer coro com eles.

Para além do conteúdo literário da coletânea, o projeto gráfico tem brilho próprio, a começar pela capa, inspirada nas revistas pulp fictions que enche os olhos com seu visual e cujo making-of está no fim no livro, escrito pela Gisele Oliveira, artista responsável por esta beleza, ele enriquece ainda mais a leitura. A diagramação dos contos também é tri legal, adoro quando uma editora inova, mas não estraga o prazer da leitura com experimentações demais.

Só posso concluir dizendo que comecei o ano de leituras muito bem e que comigo os editores e autores conseguiram aquilo que pretendiam 😉

“Não buscamos a pretensão pedante de atribuir uma função à ficção. Nós queremos, isso sim, o que o escritor norte-americano Michael Chabon definiu como “explodir a mente” do leitor: quando o mundo se revela maior do que imaginamos, quando nossos medos se tornam realidade, quando temos a sensação de sermos insignificantes na vastidão e nos mistérios do universo e, ao mesmo tempo sermos o centro dele. Nossos esforços, nossa pretensão e nossas expectativas são de tentar dar a você, leitor, essas sensações.” (pg. 9)

O Velho e o Mar

"Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos, que eram da cor do mar, alegres e indomáveis"

É muito fácil me sentir intimidada ao escrever sobre um livro que já foi legitimado como obra-prima por muitos infinitamente mais qualificados do que eu, mas ainda assim me sinto impelida a escrever sobre “O Velho e o Mar” de Ernest Hemingway.

Fazem 84 dias dias que Santiago, um velho pescador não consegue pescar um único peixe, desacreditado por seus pares, destituído de seu único ajudante, ele se lança ao mar pelo 85º dia. Mal sabe ele que assim se inicia uma jornada que testará toda sua capacidade como pescador e também como ser humano.

Ele consegue fisgar o maior peixe que já viu, e trava um luta que dura dias para conseguir finalmente abatê-lo com o arpão, mas esta é apenas uma pequena vitória, pois após amarrá-lo no barco ele é perseguido por tubarões que atraídos pelo cheiro de sangue vieram atrás de comida fresca, e é com apenas a carcaça do peixe que ele chega à praia, quando então passa então a ser novamente respeitado pelos outros pescadores.

A narrativa é permeada por um tom de melancolia que chega a doer, os monólogos do velho em alto mar nos dão a exata dimensão da confusão de sentimentos que o tomam. É uma bela ode à persistência, pois sim “O velho e o mar” é antes de tudo um história sobre um homem persistente.

Lugar Nenhum

"Richard havia percebido que os acontecimentos são seres covardes. Eles nunca acontecem sozinhos: vêm numa matilha, pulando juntos sobre alguém ao mesmo tempo."

Lugar Nenhum não nasceu prosa, nasceu roteiro de uma série de TV, em seis capítulos, Neil Gaiman o escreveu em 1997, para a rede britânica BBC. Depois ela virou História em Quadrinhos e só depois desse longo caminho que virou livro.

A história é centrada em Richard Mayhew, um escocês que vê sua vida virar do avesso depois de ajudar uma desconhecida que encontrou ferida em uma calçada de Londres. Até esta noite ele tinha uma vida pacata, um bom emprego e era dominado pela noiva controladora. Mas após ajudar a jovem Door, ele descobre na manhã seguinte que não tem mais nada. No trabalho ninguém o reconhece, sua noiva até tenta, mas não lembra quem ele é, seu apartamento é alugado com ele dentro da banheira, nem mesmo o caixa eletrônico reconhece seu cartão bancário. Diante desta situação tão bizarra ele parte em busca das estranhas personagens que julga, e de fato são, responsáveis por tudo que está acontecendo com ele, e assim parte para um mundo até então desconhecido: a Londres de Baixo.

Nesta nova Londres ele será confrontado com situações ainda mais bizarras dos que as que o levaram até ali, são tantas informações novas com as quais lidar, que Richard, em uma tentativa de manter um pouco a sanidade começa um diário mental:

"Querido Diário, começou ele. Na sexta-feira eu tinha um emprego, uma noiva, uma casa e uma vida normal (bom, pelo menos até o ponto em que a vida consegue ser normal). Então eu achei uma moça sangrando na calçada e tentei bancar o Bom Samaritano. Agora não tenho mais noiva, casa ou emprego, fico andando a esmo a uns sessenta metros abaixo das ruas de Londres e minha expectativa de vida é tão longa quanto a de uma drosófila suicida."

Uma das coisas que achei interessante no livro é o papel que tem as linhas de metrô, na Londres de Baixo os nomes das estações tem conotações reais, em “Blackfriars” encontramos os monges negros e em “Seven Sisters” existem mesmo sete irmãs. Já uma coisa que me chateou no livro diz respeito à tradução, não gosto quando parte dos nomes próprios ganham traduções e outros não, até entendo os motivos da tradutora para optar por fazer assim, mas continuo estranhando que “Door” seja filha de Pórtico.

Foi impossível ler as aventuras de Richard, Door e do Marquês de Carabas sem me lembrar de outros dois livros, primeiro de Stardust, do próprio Gaiman que também conta com um heróis às avessas, uma menina que cai de paraquedas na vida dele e um mundo paralelo que sempre esteve perto sem que ele tomasse conhecimento disso. O segundo foi Coração de Pedra, de Charlie Fletcher, que além dos elementos acima, também se passa em Londres. As histórias em si são bem diferentes e me agrada descobrir nestas leituras como são múltiplos os olhares sobre uma estrutura tão parecida.

Duas pessoas me disseram que gostei tanto de Lugar Nenhum porque ainda não li as melhores obras em prosa de Gaiman, no caso Deuses Americanos e Os filhos de Anansi, mas fico feliz com isso, mesmo com expectativas altas, adorei a história que para mim é acima de tudo sobre a fantástica viagem que podemos fazer ao mundo de medos e surpresas que há em nós mesmos, e se os outros dos livros ali na fila de espera forem ainda mais legais, só tenho a ganhar 😉

GAIMAN, Neil. Lugar Nenhum. Título original: Neverwhere, tradução de Juliana Lemos. São Paulo: Conrad, 2010.

Memórias Póstumas de Brás Cubas

“Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.”

Eu sempre espero muito de Machado de Assis e foi com expectativas inflacionadas que me lancei a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro que é considerado a obra inaugural do realismo na Literatura Brasileira, mas não adianta, por mais altas que sejam as expectativas Machado de Assis nunca me decepciona, nunca.

Nem tinha como eu não gostar de uma obra que tem essa dedicatória:

"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas".

Sem contar que ela já mostra a que veio logo nas primeiras linhas. A ironia e crítica social que permeia toda narrativa são grandes trunfos da história que o defunto-autor, não confunda com um “autor defunto”, nos conta.

A história de Brás Cubas, contada por ele mesmo do além, abrange desde a infância até a sua morte, mas nada disso é contado de forma linear, os acontecimentos vão sendo contados conforme vão surgindo na lembrança do defunto, é como um fluxo de ideias se sobrepondo, uma coisa puxa a outra e assim vamos sendo conduzidos pelas memórias deste senhor que na morte, já despido de qualquer expectativa, tece uma gama de considerações pra lá de pertinentes sobre a sociedade.

Enfim uma leitura que ainda hoje se mostra atual e coerente, é como disse no início da resenha, Machado de Assis nunca me decepciona e Memórias Póstumas não foi exceção à regra, bem ao contrário, só confirmou a genialidade do autor.

“Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 2007.

Esta leitura foi feita para o Desafio Literário cujo tema de agosto era a leitura de um Clássico da Literatura Brasileira.